sábado, 30 de setembro de 2017

O de Outono (VIII)


MARA

A chuva
não veio, os tinteiros
estão vazios,
os sonhos acomodam-se
em latas de cerveja.
Porque o Setembro,
porque esta folha de papel
fica branca, tu não dás
com a minha porta, mas
o meu cabelo cresceu,
as divas sorriem-nos
dos cartazes,
com as palavras
que eu não encontrei
um outro mata
a sua sede.
Jürg Beeler (trad. de João Barrento)
in Bumerangue 3, Guimarães, 1997

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

N de "No fundo, é isto" (III)


Lisboa, 18-19 de Dezembro de 1977


Minhas coisas tão docemente amadas, meu Oceano que és para mim o que nunca foste nem serás para ninguém, minhas manhãs de tímidas madrugadas, minhas águas correntes de regatos imensos que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os antigos chamavam Letes. Minhas queridas nuvens:

É uma grande ingratidão amar-vos tanto e ainda vos não ter escrito. Mas sei que me hão-de perdoar. Se só agora vos falo é porque talvez esteja agora mais longe de vós e mais sinta a vossa falta. Talvez por ter sido sempre impenetrável na minha completa solidão e me convencer finalmente que vou morrer tão só como nasci e cresci. Só que então eu não dava por isso. Damos sempre pelas coisas quando elas já passaram… Não sei porque escrevi «Damos»… «Dou» era o que eu devia ter escrito. Esqueço-me sempre de que só posso falar — e aproximadamente — de mim. Com o resto nem sequer me devia preocupar. O milagre de estar vivo e de vos conhecer é tão grande que me devia bastar para encher os dias todos, mesmo que eles fossem muitos. Mas… esquecemo-nos tão depressa destas coisas tão simples! Lá estou eu a falar outra vez no plural! Nisto como em tantas outras coisas não vou ter emenda até ao fim dos meus dias.

Quando vocês me conheceram eu ainda não dava sequer por vós, meio assustado ainda com a vida… Agora já muito pouco me assusta, ia a dizer quase nada. Por isso abro mais vezes os olhos para vós e chego a pensar que me escutam.
Foi tudo tão rápido embora eu goste de velocidades!!! E no meio de duas pessoas que se encontram como no meio de alguém que se encontra a si próprio há sempre um espaço qualquer que nem por poder ser muito pequeno deixa por isso de ser muito importante. Tão importante que se não existisse não havia o Mundo… Tenho pena de vos deixar assim… Mas não é o hesitar que faz o êxito. E muito menos o ser de Tão Longe.

Tenho-vos sempre na lembrança.

Mário


Mário Botas
in Aventuras de um  crâneo e outros textos,
org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas,
Lisboa: Averno 2013




[ID, Nazaré | 013]

terça-feira, 19 de setembro de 2017

M de Moeda única (ou T de Tempo)




Manuel de Freitas, Jukebox 2,
com capa de Inês Dias, Teatro de Vila Real, 2008





Inês Dias, Café Estádio, 2013

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

T de Tratado de Pedagogia (LXVIII)


Depressa antes que se veja
traz a água quente, a água
oxigenada, o mercúrio, a tintura,
a lixívia, a borracha.
Cortei, desenhei do outro lado
um fruto, forma de uma linha
única, queria pôr do outro lado
outro coração. Mas não há
outro lado nem outro coração,
depressa não quero que vejam
não quero.


Helder Moura Pereira, Mercúrio,
Lisboa, frenesi, 1987

F de Falar para as paredes (IX)


TEMA


Foram quintais de dois invernos,
um desenho na janela para explicar
qualquer coisa sobre nós, qualquer coisa
terrivelmente alheia às palavras. 

Pequenos alicerces do próprio tempo,
quem diria que os podíamos
apagar? Iam do princípio ao fim
dos meses, era onde se agarrava 
o ramo branco da casa.


Rui Pires Cabral, Praças e Quintais,
Lisboa: Averno, 2003




[ID, S. Miguel, 17/08/11]



NOMEAR-TE


Não o poema da tua ausência,
Apenas um desenho, uma fresta num muro,
Algo no vento, um sabor amargo


Alejandra Pizarnik, 30 Poemas, 
trad. Inês Dias e Manuel de Freitas, 
Lisboa: Língua Morta, 5 de Setembro de 2011

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A de A poesia é o menos (XI)




Miguel Martins, O Caçador Esquimó,
Lisboa, Fahrenheit 451, 2017

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

U de "Uma Correspondência" (IV)


"Segunda-feira

Desde que comecei a escrita do diário vejo que te interessas ainda muito por mim.


Terça-feira

Sinto que desejas ler o que escrevo.


Quarta-feira

Hoje removi as pedras no horto para que pensasses que escondia aí estas páginas. E, de facto, tu repetiste os meus gestos e ficaste desiludido.


Quinta-feira

Leio nos teus olhos que estás a sofrer. Então é verdade que ainda me queres bem.


Sexta-feira

Hoje quero que encontres estas pequenas linhas e percebas que és a minha vida."



Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria,
trad. de Mário Rui de Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A de Abrigo


ABRIGO DOS CÉUS


Eu tenho desejado ir
Onde as primaveras não falham,
Aos campos onde moscas, atrevidas e astutas, não habitam,
E alguns lírios nascem.

E tenho pedido para estar
Onde nenhuma tempestade há-de chegar,
Onde a corrente verde está abrigada e muda,
E fora da oscilação do mar.


- Gerard Manley Hopkins
in Piolho n.º 11, trad. Ricardo Marques,
Edições Mortas / Black Sun Editores, Agosto 2013


*


"[...]
Desiguais abismos, maneiras de se
se estar só, encontram aqui um abrigo
temporário, senão a própria rasura do tempo.

[...]"


- Manuel de Freitas, Juros de Demora
Lisboa, Assírio & Alvim, 2007


*


"[...]
ao abrigo do vento e da solidão que não tardaria
a descobrir o nosso esconderijo.

[...]"


- Renata Correia Botelho, Small Song,
2.ª ed., Lisboa: Alambique, 2015


*


"[...] estar ao abrigo do fim do amor, é a isso que eu chamo felicidade."


- MARGUERITE DURAS





[ID, 5 de Setembro de 2017]

domingo, 3 de setembro de 2017

D de Domingologia (II)


Entra agora
a infância toda
aos bocadinhos, ossos

no chão, engomados
domingos a beijar
avô, bisavô

trémulo na Rua
dos Dous Amigos, casas
pequeninas
guardadas em caixotes.

Entra agora a jarra
de flores, a mesa
limpa e a janela

abrindo.


José Carlos Soares, De passarem aves
Coimbra, do lado esquerdo, 2014





[ID, Sintra | 04/017]