segunda-feira, 30 de maio de 2016

domingo, 29 de maio de 2016

A de Amor (XXIII)


Tristão e Isolda: o amor em si. À margem dos que ateiam os ciúmes e a inveja: dos olhos. À margem do ressoar das críticas e aprovações: os rumores. À margem dos olhos e dos rumores. Ninguém os viu e ninguém ouviu falar deles. Viviam no bosque. Um lobo e uma loba. Tristão e Isolda. Nada possuíam. Não levavam nada sobre os corpos. Nem tinham nada sob os pés. Acima deles não existia nada. Por detrás deles - nada, diante deles - o Nada. Nem amanhã, nem ontem, nem ano, nem hora. O tempo tinha-se detido. O mundo chamava-se bosque. O bosque chamava-se arbusto, o arbusto chamava-se folha, a folha chamava-se - tu. Tu chamava-se eu. Inexistência no vazio. O fundo como ausência, e a ausência como o fundo.


MARINA TSVIETAIEVA




Uma janela do meu antigo (e encerrado) liceu,
24/05/013

sexta-feira, 27 de maio de 2016

F de Fazer Fotografia - LXXVIII b




[ID, Intercidades Faro-Lisboa, Maio 016]


*



quarta-feira, 25 de maio de 2016

S de Solidão (ou C de Comunidade) LX


[...]
aqui ao lado deste jardim (vê-se do jardim) há uma cegonha. vive numa chaminé, claro. a cegonha não lhes interessa, a estes homens, porque não está presa, acho que é por isso que a cegonha não lhes interessa, mas não sei se me deva contentar com essa explicação. sei que nas lojas às vezes têm animais em gaiolas. às vezes no meio da rua. é para abater a pedido, a carne palpitante. é um cheiro, não de fezes, mas de medo: toda a esquina, quase toda a rua, cheira a medo. no entanto os animais continuam a comer. comem até morrer. não sei se diga que são originais, quanto a estes visitantes, a estes homens, não sei se comem também até morrer, nem sei se já defecaram hoje, todos. chegam aqui e ficam à espera: olham para mim e uns para os outros e estão à espera: de qualquer coisa vinda de fora deles, de fora para dentro, um consolo, uma emoção, uma surpresa, um divertimento, qualquer coisa que lhes anime a vida, que por momentos os faça não estarem arrependidos de ter nascido. hoje melhor seria, claro, terem ficado diante da televisão, terem ficado a ler qualquer graciosa história de amor com happy-end, por exemplo aquela novela intitulada em português "um homem no jardim zoológico". não sabem por que é que eu estou aqui: mas sabem que não é para os divertir. e se as jaulas estivessem todas cheias com outros como eu, como eles? sim, se as jaulas estivessem todas cheias com outros como eles, como eu?

[...]


Alberto Pimenta
in Que lareiras na floresta, Porto: 7 Nós, 2010




[ID, 'A insustentável leveza do ser', 05/016]

segunda-feira, 23 de maio de 2016

V de Vida (VI)


21 de Fevereiro de 2014


É belo de mais para morrer
(M. G. Llansol, Caderno 1.62, p.62)


O que é belo de mais para morrer, não morre. Sobre ele, ela, isso, a morte não tem poder. E quando chega, só lhe reforça o sentido e o fulgor. O que é belo de mais para morrer conhece a morte, e sabe que ela não pode atingi-lo. A beleza é um antídoto para a morte. Traz em si mesma o seu destino, que é a escolha da sua verdade.


João Barrento, COMO UM HIATO NA RESPIRAÇÃO - Diário do Dia Seguinte
Lisboa: Averno, 2015

sexta-feira, 20 de maio de 2016

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A poesia é o menos (X)


quarta-feira, 18 de maio de 2016

C de Coimbra (II)




CAFÉ SANTA CRUZ


Se queres ver os tritões
- ou, se preferires, as sereias –
nos três vitrais da entrada,
deves chegar a meio da tarde
e obrigar-te a não ter pressa.
Em Coimbra morre-se devagar. É bom.

Conheci poucos lugares onde
reinasse assim o esplendor do incomum.
Cada mesa tão diferente da outra:
um pintor rústico que faz dos dedos
pincéis, dois namorados que já saíram,
com a pressa física do amor,
o velho reformado que lê pela décima vez
o jornal da véspera – ou ainda o que
regista envergonhado estes versos.
Desiguais abismos, maneiras de se
se estar só, encontram aqui um abrigo
temporário, senão a própria rasura do tempo.

Pouco importa. Abandona-te, finalmente,
ao sortilégio mudo de sereias
ou tritões. É tudo o que precisas.
Uma música feliz perde-se na tarde
e as lágrimas, afinal, são uma espécie de sorriso.


Manuel de Freitas, Juros de Demora, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007




[ID, Coimbra, 14/05/016]

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A de "A propósito de andorinhas"


A CONTRAPROVA


É preciso guardar
o recibo das andorinhas
quando reencontram,
tumultuosas,
o ninho.


António Osório, Décima Aurora,
Lisboa: Na Regra do Jogo, 1982





[ID, 'Vista para um saguão', Maio 2016]

quarta-feira, 11 de maio de 2016

C de Começar o dia com um livro novo (XLIV)


"Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas."


- André Breton / Paul Éluard





[Miguel de Carvalho, Neste estabelecimento não há lugares sentados,
com arranjo gráfico de Inês Mateus,
Lisboa, Alambique, 2016]

terça-feira, 10 de maio de 2016

T de Tempo sem tempo (XIX)


XX


Caso contrário, se não houver uma dor profunda que torne os homens igualmente silenciosos, um ouve mais, outro menos, da poderosa melodia do pano de fundo. Muitos já nem a ouvem. São como árvores que esqueceram as suas raízes e que crêem que a sua força e a sua vida são o rumor dos seus ramos. Muitos não têm tempo para a ouvir. São impacientes para com o tempo à sua volta. São pobres apátridas, que perderam o sentido da existência. Primem as teclas dos dias e tocam sempre a mesma monótona nota perdida. 


Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. de Sandra Filipe, Lisboa, Averno, 2011

quinta-feira, 5 de maio de 2016

E de Espiga - IV b





E de Espiga (IV)


A MORTE


Para Yvan Goll


A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação. 

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.


Paul Celan,
A morte é uma flor, trad. de João Barrento,
Lisboa: Cotovia, 1998