sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

L de Levantar a cabeça (IX)


LUXÚRIA


Caí no hábito 
de ir às matinas. Hoje
descobri que estão a reparar
a igreja. As janelas laterais
foram retiradas. Fiquei chocado
com o som das andorinhas. Com o sol
e o cheiro da manhã.
Percebi que tem havido um engano. 


JACK GILBERT
[Trad. Inês Dias]


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

P de Poética (XXXVIII)


A PANTERA
                   
                               
                                     
Esta pantera é a minha irmã mais velha. Rugiu pela primeira vez quando eu ainda amava tudo o que me acontecia: ouvi aquele rugido como algo que me entregava o universo. Nasceu assim entre nós um certo carinho desonesto e incomparável. Ela, com essa agilíssima forma coberta de ébano cintilante, aproxima-se para me seduzir através dos seus movimentos de aço: contemplo o seu brilho hipnótico, lamentando a pobreza do meu poder, e recordo as vezes em que nos lançámos para o corredor, irmanados pelo desejo comum da aniquilação. O nosso incesto vai-se fortalecendo graças a um estilete de rancor em cujo fio sorri uma ternura desconcertante: aprendemos que o ódio é mais sensual do que a piedade.
                                      
Diz a verdade a esta gente. Diz-lhes que me protejo das tuas arranhadelas. Diz-lhes que a minha maior luxúria consiste em projectar a tua destruição. Diz-lhes que contra-ataco a toda a hora com a insuportável esperança de esmagar pouco a pouco a tua compacta agressão, a tua existência, a tua proximidade, a tua memória. Diz-lhe que me servi, contra ti, de todas as armas: as mulheres, o trabalho, a música e milhares de cigarros, os amigos e as palavras, a arte, o álcool. Vivia como a palavra socorro. Vivia em legítima defesa. Usei todas as armas contra a tua cabeça belíssima e escura, todas as armas contra o teu esplendor, todas as armas contra o desatino da tua imortalidade.
                                                
Esta pantera é a minha irmã mais velha. Vigia-me como um oceano vigia a costa e trata-me pelos meus diminutivos. Eu vigio-a como um réu de morte vigia os minutos, e chamo-lhe Tristeza à falta de um nome mais vasto e depravado.
                             
                                       
                                           
FÉLIX GRANDE, 1937 - 30/01/2014
[Trad. ID]

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

COMO AMAR OS MORTOS


Ela vive, diz o pássaro, e não diz nenhum
disparate. Ela está morta e disponível,
diz a raposa, conhecendo os espíritos.
Não a fotografia no funeral,
não o objecto do luto. Ela está morta
e podes ter isso, diz ele. Se conseguires
amar sem cortesia ou delicadeza,
diz a raposa, ama-a com o teu coração de lobo.
Porque os mortos devem ser desejados.
Não como nos longos casamentos,
em que nunca acontece nada.
Não nos bosques nem nos campos.
Não nas cidades. O doloroso amor de estar
permanentemente sem abrigo. Não a cor, mas a mancha.


Jack Gilbert
in Piolho n.º12, trad. de Inês Dias,
Edições Mortas / Black Sun, Dezembro 2013

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

P de Prazeres (III)





Willy Ronis, Nuit au Chalet (1935)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

J de (O) Jardim e a casa - VIII b


                                3.ª Voz


Tudo isto tem a ver com o conhecimento
de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número
      e vai desaparecer correndo pelo telhado


                                                 (breve pausa)


- MÁRIO CESARINY

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXVIII


INTERCÂMBIO


É importante fazê-lo

quero que me contes
o teu último optimismo
eu ofereço-te a minha última
confiança

ainda que seja uma troca
mínima

devíamos cotejar-nos
estás sozinha
estou sozinho
por algum motivo estamos próximos

a solidão também
pode ser
                uma chama.


- Mario Benedetti
[Trad. ID]

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

B de Bom Ano Novo (VII)


PRÓLOGO


Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo de barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo mal vejo uma nuvem arrastada pelo vento.
[...]



- Matsuo Bashô, O caminho estreito para o longínquo norte, 
versão de Jorge de Sousa Braga, Lisboa, Fenda, 1995 [2.ª ed.]