domingo, 1 de dezembro de 2013

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (IV)


(gritar lobo)


continuei a regressar ao lugar onde me habituei a gritar lobo até muito depois de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do medo extintas com cobertores e alguma companhia – com uma presença recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio. nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.


Tiago Araújo, Respirar debaixo de água,
Lisboa, Averno, 2013

1 comentário:

Anónimo disse...

muito.
beijo.
marta