segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

H de (A) Humanidade em Agosto (VI)


A PANTERA


De percorrer as grades o seu olhar cansou-se
e não retém mais nada lá no fundo,
como se a jaula de mil barras fosse
e além das barras não houvesse mundo.

O andar elástico dos passos fortes dentro
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.

Mas por vezes a cortina da pupila
ergue-se sem ruído - e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.


RAINER MARIA RILKE traduzido por Vasco Graça Moura
in Revista Egoísta n.º 51, Casino do Estoril, Dezembro 2013

L de "Lived in bars"


A PANTERA


Exausto, ele já só vê os bares
que bruxuleiam  à sua frente desfocados;
parece que existem mil bares
e atrás desses mil bares um mundo vazio.

A rotina de um pêndulo: rodar sobre os calcanhares até
sentir que atravessou o seu próprio corpo – como  whisky
despejado até ao gargalo e depois de volta ao fundo da garrafa.
Ele gira sobre o eixo da sua vontade dormente e perplexa.

Às vezes, porém, as persianas dos olhos
abrem-se e deixam entrar uma imagem – um rosto, talvez –
disparando por entre os músculos tensos, aliviando
os membros, correndo até ao seu coração para morrer.


Robin Robertson, Slow Air,
Londres: Picador, 2002
[Trad. ID]

sábado, 21 de dezembro de 2013

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura" (III)


O que buscamos
uns nos outros
é sempre a noite


José Tolentino Mendonça, A Papoila e o Monge,
Lisboa, Assírio & Alvim 2013

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura" (II)


RUBOR DOS MADRUGADORES


Para Henri Mathieu



A verdade é pessoal.
   

Cuidado: nem todos são dignos da confidência.
   
Abraçarei aquele que, emergindo do seu cansaço e do seu suor, se aproximará para me dizer: "Vim enganar-te."
    
Ó grande barreira negra, a caminho da tua morte, porque é que te cabe sempre mostrar o relâmpago?

  


I

O estado de espírito do sol nascente é de alegria, apesar do dia cruel e da recordação da noite. A cor do coágulo torna-se o rubor da aurora.

II
Quando temos a missão de acordar, começamos por nos lavar no rio. O primeiro encantamento, tal como o primeiro assombro, são para nós próprios.

III
Impõe a tua sorte, agarra com força a tua felicidade e enfrenta o teu risco. Observando-te, eles acabarão por se habituar.

IV
No auge da tempestade, há sempre um pássaro para nos tranquilizar. É o pássaro desconhecido. Canta antes de levantar voo.

V
A atitude mais sábia é não se aglomerar, mas, na criação e na natureza comuns, encontrar o nosso número, a nossa reciprocidade, as nossas diferenças, a nossa passagem, a nossa verdade, e esse toque de desespero que lhes serve de aguilhão e de nevoeiro instável.



VI

Vão ao essencial: não precisam de árvores jovens para reflorestar o vosso bosque?



A intensidade é silenciosa. A sua imagem não. (Amo quem me ofusca e acentua depois a escuridão dentro de mim.)



VIII
Como sofre o mundo, para se tornar do homem, ao ser façonné ente as quatro paredes de um livro! Que o entreguem depois às mãos de especuladores e de extravagantes que o pressionam para avançar mais depressa do que o seu próprio movimento, como não ver nisso apenas falta de sorte? Combater 



René Char
[Trad. ID - A continuar]

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura"




[Julho 2012]

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

M de "My house, I say" (IV)


bagos de surpresa pelo chão - as palavras

com elas pode-se morar uma casa

aceso o lume
composta a mesa


Paulo Pais, Gravador de Chamadas,
Porto: Campo das Letras, 1997

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

S de Sete rosas mais tarde (III)


14
O MORTO: A FLOR DE SI


A única coisa certa sobre o morto
é que já foi senhorio de carne:
agora é perdê-la flor que se
evapora e sorrir até aos ossos. 


Alexandre Pinheiro Torres, A Flor Evaporada,
Lisboa: Publicações D. Quixote, 1984




Dois dos desenhos de Sofia de Sousa para a edição de 1919 
de Dinis e Isabel - Conto de Primavera.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

T de Tratado de Pedagogia - LXI b


"A vida antiga foi apenas silêncio. Foi só no século XIX, com a invenção das máquinas, que nasceu o ruído. Hoje em dia, o ruído domina soberanamente a sensibilidade dos homens. Durante vários séculos, a vida decorria em silêncio ou em surdina. Os ruídos mais recorrentes não eram intensos, nem prolongados, nem variados. De facto, a natureza é normalmente silenciosa, excepto as tempestades, os furacões, as avalanches, as cascatas e alguns movimentos telúricos excepcionais. É por isso que os primeiros sons que o homem extraiu de uma cana furada ou de uma corda estendida o maravilharam profundamente."
 
 
Luigi Russolo, A Arte dos Ruídos - Manifesto Futurista, 1913,
trad. Miguel Martins, Lisboa: Momo, 2013
 

sábado, 14 de dezembro de 2013

T de Tratado de Pedagogia (LXI)




"[...] A bailarina e coreógrafa Vera Mantero foi à Serra do Caldeirão. [...] É verdade que na dança contemporânea a música pode ser o puro ruído, ou ser apenas música implícita. Mas o silêncio da serra é outra coisa: é a suspensão de todo o movimento humano. Por isso, a peça acaba por ser muito mais um poema - um poema como os de Artaud, 'um homem que, como diria Herberto Helder, tinha as correntes da terra ligadas às corrente do poema', diz Vera -, já que a poesia tem um pacto antigo com o silêncio. [...]"


António Guerreiro,
no Ípsilon (13/12/2013)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLIX)


Afinal a história é uma questão de escrita. É por isso que a função irónica dos intelectuais tem tanta importância. Antes de se terem deslocado para o terreno da consciência moral, eles desafiavam o previsível em discursos que reuniam espírito, subtileza, jogo da contradição, ironia. Hoje, porém, o prazer da desobediência dá cada vez mais lugar à acusação de irresponsabilidade. O modo de escapar a isso é então o pensamento radical. Assim definido: "uma forma feliz e uma inteligência sem esperança". Ou seja, a esperança é a de uma ironia do mundo, a começar pela linguagem e pelas ficções desreguladoras que se vão construindo como muros a separar o artifício do artificial.


Silvina Rodrigues Lopes,
citada in Cão Celeste n.º4, Lisboa, 2013, p.27



domingo, 8 de dezembro de 2013

E de Estudos literário comparados - II b


I heard a Fly buzz – when I died –
The Stillness in the Room
Was like the Stillness in the Air –
Between the Heaves of Storm –

The Eyes around – had wrung them dry –
And Breaths were gathering firm
For that last Onset – when the King
Be witnessed – in the Room –

I willed my Keepsakes – Signed away
What portions of me be
Assignable – and then it was
There interposed a Fly –

With Blue – uncertain stumbling
Buzz – Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –



domingo, 1 de dezembro de 2013

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (IV)


(gritar lobo)


continuei a regressar ao lugar onde me habituei a gritar lobo até muito depois de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do medo extintas com cobertores e alguma companhia – com uma presença recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio. nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.


Tiago Araújo, Respirar debaixo de água,
Lisboa, Averno, 2013