quinta-feira, 31 de outubro de 2013

S de "Sleeping is the only love" (III)




LAWRENCE'S, QUARTO TRADIÇÃO


para a Inês Dias e a Marta Chaves


Dormes, e eu não. O que tem sido
uma constante, inversamente recíproca,
dos dias e das noites que aceitámos partilhar.

Lá em baixo, a desoras, o rebanho
passa, faz-me ouvir os breves
badalos, entre folhagem seca.
De Lisboa só nos chegam notícias
fúnebres, dispensáveis. Caim deu boleia
a Abel, num automóvel de luxo.
E arrasta-se, entre putas e ladrões,
um tango triste que já não queremos dançar.

É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã,
subitamente, o mundo nos pareça perdoável.


Manuel de Freitas, Cólofon,
Lisboa: Fahrenheit 451, 2012

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A de A poesia é o menos (II)


AU SOLEIL
 
 

Il ne s'agit pas d'être le feu, mais de se faire un peu de feu
Quand on a froid et que l'humide veut régner sur nous peu à peu,
II ne s'agit pas d'aller toujours sur une grand-route prévue
Mais de pouvoir flâner un peu comme fait même l'âne qui broute,
II ne s'agit pas d'être partout mais de choisir un petit coin,
Appelez-le arbre, maison ou femme ou bien morceau de pain,
Un jour je t'expliquerai ce que sont le ciel, les étoiles
Et ce que tu es toi-même, avec ton or innocent,
Je te ferai quelques croquis sur le tableau noir de la nuit,
Mais si tu veux y voir clair, il faut venir tous feux éteints.


- Jules Supervielle (1959)
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

M de Música - b




- in Manuel de Freitas, A Noite dos Espelhos,
Lisboa, frenesi, 1998



*




T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XII


XII.


O rio move-se.
O melro deve estar a voar. 




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santa Cruz, 09/012]


[...] O sentimento apaixonante de ser eleito fosse para o que fosse, eis a única coisa certa e bela que se reflecte no olhar daquele que avalia pela primeira vez o mundo. Se este é senhor das suas emoções, nada encontra a que possa dizer sim sem reserva; busca a bem amada possível, mas ignora qual ela é; tem capacidade de matar, sem estar seguro de que o deve fazer. O desejo de evoluir, próprio da sua natureza, impede-o de acreditar no facto realizado, mas tudo quanto vem a conhecer apresenta-se como se fosse já irrevogável. Pressente que esta ordem não é tão estável como parece; nenhum objecto, nenhuma pessoa, nenhum princípio é sólido, tudo está dependente de uma metamorfose invisível, mas nunca interrompida; há mais futuro no instável do que no estável e o presente não passa de uma hipótese que ainda não foi ultrapassada. Que poderia ele fazer de melhor do que conservar a sua liberdade em relação ao mundo, como um sábio que se mantém livre em relação aos factos que poderiam levá-lo a acreditar prematuramente em si? Por isso hesita em ser seja o que for; um carácter, um modo de vida, definido, uma profissão, não passam de representações sob as quais avulta já o esqueleto que será tudo quanto lhe resta no fim. Busca compreender-se por outros meios; com aquele apetite de que é dotado para tudo quanto pode vir a enriquecê-lo interiormente (mesmo para além dos limites da moral e do pensamento), experimenta a impressão de ser um passo, livre de seguir em todas as direcções, mas que vai sempre de um ponto de equilíbrio até ao seguinte, e sempre em frente. E se imagina, um belo dia, ter encontrado a ideia justa, apercebe-se de que uma gota de incandescência invisível caiu sobre o mundo e que a Terra, com a sua luz, mudou de aspecto.


Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,
Lisboa: Livros do Brasil, s/d
 
 
*
 
 
8. O mundo não é assim tão complicado: levantas os olhos, baixas os olhos, esticas o braço e tocas; não esticas o braço, és tocado.

Gonçalo M. Tavares, "Breves notas sobre o poder"
in Granta n.º2, Lisboa, Tinta-da-China, 2013
 

domingo, 27 de outubro de 2013

M de Música




Lisboa, 09

S de "Semantics won't do" (XXIII)




Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, THE MAN FROM LONDON, 2007

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XI


XI.


Ele atravessava o Connecticut
Numa carruagem de vidro.
Um dia, o medo apoderou-se dele,
Ao confundir
A sombra dos seus cavalos
Com melros.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Moinho Grande, 08/013]

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

E de Educação

"Mas este vento de onde veio? À força de viver com crianças _____ concluí que toda a criança é rara e importante, e que a sua contemplação me ensinou a descondicionar o saber.
Uma educação nacional planificada é superstição."


Maria Gabriela Llansol, Uma data em cada mão - Livro de Horas I,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2009

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - X


X.


Ao verem melros
A esvoaçar na luz verde,
Até as alcoviteiras da eufonia
Gritariam subitamente.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 07/012]

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

P de "Postais do fim do mundo" (IV)


TO POSTERITY


When books have all seized up like the books in graveyards
And reading and even speaking have been replaced
By other, less difficult, media, we wonder if you
Will find in flowers and fruit the same colour and taste
They held for us for whom they were framed in words.
And will your grass be green, your sky be blue,
Or will your birds be always wingless birds?


Louis MacNeice, Colllected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007




terça-feira, 22 de outubro de 2013

A de "A poesia é o menos"



"Onde não possas amar, não te demores (Eleanora Duse)"

Eastwood da Silva, 535 Máximas,
Lisboa, &etc, 1999




domingo, 20 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - IX


IX.


Quando o melro desapareceu de vista
Marcou o limite
De um de muitos círculos.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santarém, 06/013

sábado, 19 de outubro de 2013

F de "(Une) Famille d'Arbres" (VII)


AUTOBIOGRAPHY


In my childhood trees were green
And there was plenty to be seen.

Come back early or never come.

My father made the walls resound,
He wore his collar the wrong way round.

Come back early or never come.

My mother wore a yellow dress;
Gentle, gently, gentleness.

Come back early or never come.

When I was five the black dreams came;
Nothing after was quite the same.

Come back early or never come.

The dark was talking to the dead;
The lamp was dark beside my bed.

Come back early or never come.

When I woke they did not care;
Nobody, nobody was there.

Come back early or never come.

When my silent terror cried,
Nobody, nobody replied.

Come back early or never come.

I got up; the chilly sun
Saw me walk away alone.

Come back early or never come.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

V de Viagens (VII)



Cascais-Lisboa, 18/10/013

E de Epígrafe (II)


BARCELONA IN WARTIME


In the Paralelo a one-legged
Man sat on the ground,
His one leg out before him,
Smiling. A sudden sound

Of crazy laughter shivered
The sunlight; overhead
A parrot in a window of aspidistras
Was laughing like the dead.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007



*




ENUMERAÇÃO


As pessoas demoram-se pouco na rua; olham.
Os números sobre as portas não significam nada.
O carpinteiro prega uma mesa estreita e comprida.
No poste telegráfico colam uma lista de nomes.
Um pedaço de jornal ficou preso nos espinhos: zumbe.
Sob as folhas das videiras estão as aranhas.
Uma mulher saiu de uma casa e entrou noutra.
A parede amarela, de fresco, com reboco caído.
Uma gaiola com um canário na janela do morto.
 

 Yannis Ritsos (trad. Custódio Magueijo)
in Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias,
Lisboa: Averno, 2013



quinta-feira, 17 de outubro de 2013

S de Sense of Snow (XII)




The room was suddenly rich and the great bay-window was
Spawning snow and pink roses against it
Soundlessly collateral and incompatible:
World is suddener than we fancy it.

World is crazier and more of it than we think,
Incorrigibly plural. I peel and portion
A tangerine and spit the pips and feel
The drunkenness of things being various.

And the fire flames with a bubbling sound for world
Is more spiteful and gay than one supposes -
On the tongue on the eyes on the ears in the palms of one's hands -
There is more than glass between the snow and the huge roses.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - VIII


VIII.


Sei de tons nobres
E de ritmos lúcidos, irresistíveis;
Mas sei, também, 
Que o melro faz parte
Daquilo que sei.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Vila Real, 11/012

R de (O) rio da minha aldeia (VII)





Vasco Graça Moura e Gérard Castello- Lopes, Giraldomachias
Lisboa, Edições Quetzal / Casa Fernando Pessoa, 2000

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - VI e VII


VI.


Os pingentes de gelo cobriam a longa janela
De vidro bárbaro.
A sombra do melro
Atravessava-a, de um lado para o outro.
O ambiente
Desenhava na sombra
Uma causa indecifrável.



VII.


Ó homens magros de Haddam, 
Porque é que imaginam pássaros de ouro?
Não vêem como o melro
Anda entre os pés
Das vossas mulheres?





WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 04/013

domingo, 13 de outubro de 2013

T de "The days grow short" (VIII)


ANINHAS


Um gato dorme ao meu lado, debaixo do meu braço direito, com o focinho apoiado na minha clavícula, seguro de que não me moverei nem desmontarei o abrigo em que se aninha, junto ao meu corpo. Sinto-lhe o pulsar, a respiração das árvores que lhe duram quatro estações num segundo de peito. Da inspiração à expiração, um ano de crescimento definha-se no seu sopro; como nas imagens míticas do vento encabeçando os pontos cardeais. Embala-me — seja eu um dorso de madeira flutuando entre mares — e embalar-me-á. O meu gato é o meu tempo. E o meu tempo é este tempo em que tenho os sonhos de um gato por companhia. Por ele trocaria o tempo em que sou apenas abrigo para animais domésticos.

— só deus mora nos gatos.


Gostaria de ter por casa o interior de um sonho em que apenas se recorde o negativo extraído ao mundo. Sonhar-me estática ou em movimento através da passagem da luz pelos slides; imagens projectadas a sépia contra uma parede de maior idade — salpicadas a sépia todas as paredes são lamentos de outonos passados — sem futuro, parando na finitude de um encantamento menor em que deus ainda não havia sido privado do meu corpo.


— deus mora nos gatos, à falta de melhores dias no corpo dos vivos.



Beatriz Hierro Lopes, É Quase Noite,
Lisboa, Averno, 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - V


V


Não sei se prefiro
A beleza das entoações
Ou a beleza dos subentendidos,
O melro a assobiar
Ou o instante depois.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santarém, 01/013

sábado, 12 de outubro de 2013

P de Poética (LII)


EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A primavera volta.
A terra treme. E passam as aves em bandos
vindas de Heligoland por detrás da serra.
O teu olhar poisava em mim: estava certo
que fosse dessa maneira. Agora esqueceste
- também está certo, a gente crê-o como tal. 
Porque passar, voltar, tremer, poisar, 
esquecer o que foi agudo e fundo
são coisas, digo bem, de todos os dias.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? morreu-lhes a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

Se o teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
"Há um futuro à espera", porque não também
uma outra mulher que no futuro me espera?
Os amantes esquecem: é que alguma coisa
os leva (recônditamente) a esquecer.
A primavera volta, as aves passam em bandos;
e a mesma terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade. Tudo isto
fará a delícia e o horror dos nossos filhos.

Os poetas, que se lamentam de mais,
acenam com as suas dores particulares
a quem passa, que passa por outras razões.
Querem dedos suaves na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, seres em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta. É bom saber
que num dia qualquer de um destes anos
vamos todos rir e dar as mãos,
troçar do domador se ainda houver.
Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Portanto não morri. Caíram árvores,
camponeses gritavam enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, Cancioneiro Vértice, 1963

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - IV


IV.


Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Beja, 08/013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

C de Conhecimento explícito da língua


"[...] Tomemos de uma brasa quente, e a coloquemos na palma da mão. Se eu disser que é a brasa que queima minha mão, estaria incorreto. Para tudo dizer deveria afirmar que o que queima é a negação, pois a brasa contém algo que a minha mão não contém. E é este não que me queima. Mas se minha mão contivesse tudo aquilo que a brasa contém, então seria da mesma natureza do fogo. Neste caso, nem todo fogo do mundo queimaria minha mão. [...]"

trad. de Marcos Beltrão 

domingo, 6 de outubro de 2013

T de "Treze maneira de olhar para um melro" (III)


III.

O melro rodopiava nos ventos de Outono.
Era uma ínfima parte da pantomina.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 12/012

A de Andar a pé


Sinto o mesmo em carrosséis, táxis e às vezes autocarros:


"Para Moosbrugger, que pouco se preocupava com o seu conteúdo, este trajecto era uma distracção. Entre dois períodos de cadeia, calmos e sombrios, surgia um tempo diferente, como uma onda de espuma branca e opaca. Fora, aliás, sempre assim que ele vira a liberdade."

Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,
Lisboa, Livros do Brasil,  s/d

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

J de (O) Jardim e a Casa - XIX


CANCIÓN DEL DIOS SIN ORILLAS


A Pilar Pardo e Raúl Pizarro



El gorrión precavido
me mira y guarda silencio.
Habita en ese otro lado
al que yo no pertenezco.

Me ve dentro, en su jardín,
llevando atrás a mis muertos,
los que me preguntan cómo
salir de nuevo a lo abierto.

El gorrión precavido
que ve lo que yo no veo
- simas de un Dios sin orillas - 
porque a mí me asusta verlo.


José Mateos, Cantos de vida y vuelta,
Valência, Editorial Pre-Textos, 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

P de (The) Privacy of Rain - XLVIII


 
"[...]
Raios me partam se não fujo!
Desta chuva que me inquieta a memória. Aquela tarde como cascas de ovos a estalar entre os dedos matando possíveis nascentes ou ludibriando os pássaros para voar sobre umas asas escondidas de penas soltas.
Entre luzes de néon e cartazes gigantes, uma sombra muito pálida de alguém que não dormiu. Prestes a despenhar-se. Segura-se nas grades.
[...]"
  
Silvina Rodrigues Lopes, E se-pára, Lisboa, Hiena Editora, 1988


F de Fazer Fotografia (LXVI)


© Paulo Nozolino