segunda-feira, 25 de março de 2013

C de "C'était lors de mon premier arbre" (II)


[...]
Hoje, se vou a Benfica, não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, não sobra nenhuma cegonha na palmeira dos Correios (já não existe a palmeira dos Correios e a quinta dos Lobo Antunes foi vendida), o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob estas marquises e estas sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota, de vivenda em vivenda, com a Sagrada Família, na sua redoma embaciada, o Lafaeite e o Jaurés jogam ao virinhas, na Calçada do Tojal, cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o "Papagaio Louro" no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei-de ouvir a voz da minha mãe a chamar
- Antóóóóóóóónio
e um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver, e sumir-se-á lá em cima, no quarto, a sonhar que ao menos a mulher do Sandokan não o obrigaria nunca a comer puré de batata nem sopa de nabiças durante o tormento do jantar.


António Lobo Antunes, "Elogio do Subúrbio"
in Crónicas, Lisboa: Publicações D. Quixote, 1995

Sem comentários: