segunda-feira, 17 de setembro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXIII)


ABYSSUS   ABYSSUM   ABYSSINIA

 

Que país este… Que absoluto corte com tudo o que é vital, que é bom, que tem sabor humano e fresco.
  
Que torvas personagens abrasadas de medo povoam este enorme convento mortuário   Que cruz cada esquina   Que assomo de vingança luz nos olhos apenas na imaginação: porque o mar flutua não sobre a terra não mar para navios – mar podre com abraços de mortos quase mortos contaminando as águas no nauseabundo gosto que deixaram na vida enquanto erguiam braços depostos nado-mortos. Vê-los agora assim flutuantes      decifrar-lhes nos ossos transparentes de finos emblemas conseguidos definitivamente pela morte pelo sal pela água que os cerca cambaleantes: é tê-los todos juntos no mapa que é tão fácil – mercê só da lembrança… – erguer em carne viva quando o era e já carne morena mas entregue ao seu destino humano deste país enfermo: onde homens e mulheres – despidos ou vestidos – sorrindo ou não chorando o que é o mesmo – pendurando sinais em qualquer parte eu ninguém vê – São meus irmãos, vos digo, e no entanto…
Que absoluto golpe rachou de cima a baixo os músculos a vontade o céu deste lameiro. Que assombro e ciclone, que insensatez de sombra e que terrível dom de não nos ver: tem este meu país que não tem nome porque o nome se dá a alguém vivo.
   
Que terrena e solene podridão escorre ainda deste poema e todos os poemas.
      
Não temos mais ninguém. Ouvimo-nos a sós. Andamos baixo. Calcorreamos – mas só no pensamento – estradas percorridas pelos vivos. Semelhamos alguém – e cada um de nós – que vá bater, noite alta, a uma porta que nunca tem dentro dela o dia – e que o odeia, que odeia!, que mata quem lhe bata receando que morra sem que tenha sabido o que é amor. Luta tenaz mantemos – dia a dia, e sem nenhum esmorecimento contra a fome de cão o rabo do polícia, o magarefe que… sorrindo está no Alto! foice em punho! Imagens – só de imagens se compõe o nosso pão. Os livros as mulheres as carnes quentes e saborosas das mulheres de Matisse: aí está – como vêem! – um sonho que é vedado caminho que em silêncio unidos percorremos. Miséria. – que miséria! Ter olhos que, se lá estão, são olhos que esta morna humildade sem ter quarto – de longe empalidece.
As mãos? – Que mãos te movem, meu pobre caçador de outros navios que foram do século de quinhentos das brumas da aceite fatalidade dos canais moribundos por onde neles se escoa a fome pura da forma que por não ter forma nossa vai vogando ao sabor estrangeiro das bocas entrevistas somente quando se dorme. Estamos, pois, sempre, dormindo. Que sono tão de pedra e tão disforme – que nem sono será: antes, tudo fingido, tudo fingido! Até no sono parece que não temos sono de homens… parece que já não merecemos pena de morrer por ter nascido, parece, sim!, que andamos só em volta do poste que se ergue e tem no cimo a ávida sigla funesta, ávida maratona que em galope vai seguindo, vai lendo, vai formando: passos que não são nossos, são da sombra que fomos: NUNCA FOMOS.

Fodemos, procriamos, dormimos, acordamos. Mas nunca, nunca fomos nem seremos: aqueles que do lado de lá dos nossos sonhos formam barreira intransponível para membros sem força, para olhos sem vista, para lábios sem lume, para loucos sem nenhum acesso verdadeiro à verdadeira loucura, para silentes vermes que caminham por entre as sílabas como se vermes fossem, somente, vermes, nada mais que vermes: deixando atrás de si no rastro que os assinala: a lengonha que deixam – nas cicatrizes da alma, – se é que há alma! – os ditos, as risadas, os conciliábulos dos doutores, a sabedoria frouxa e sem nervo dos pobres de espírito que acreditam – ainda! – em Deus, no Deus futuro.
Ninguém se importa que nos sirvam veneno hora a hora. Ninguém. Nem nós nos importamos. Já não temos impulso para recusar o copo. Vamos bebendo, e pronto. Esperanças já não luzem no brilho dos licores.
Até um dia!... Salvo seja.
   
Até na caridade nós mentimos.
    
Que cara nos serviram de encomenda que parece verdade que existimos.

 
Raul de Carvalho, Quadrangular (1976)
 

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