segunda-feira, 28 de outubro de 2013


[...] O sentimento apaixonante de ser eleito fosse para o que fosse, eis a única coisa certa e bela que se reflecte no olhar daquele que avalia pela primeira vez o mundo. Se este é senhor das suas emoções, nada encontra a que possa dizer sim sem reserva; busca a bem amada possível, mas ignora qual ela é; tem capacidade de matar, sem estar seguro de que o deve fazer. O desejo de evoluir, próprio da sua natureza, impede-o de acreditar no facto realizado, mas tudo quanto vem a conhecer apresenta-se como se fosse já irrevogável. Pressente que esta ordem não é tão estável como parece; nenhum objecto, nenhuma pessoa, nenhum princípio é sólido, tudo está dependente de uma metamorfose invisível, mas nunca interrompida; há mais futuro no instável do que no estável e o presente não passa de uma hipótese que ainda não foi ultrapassada. Que poderia ele fazer de melhor do que conservar a sua liberdade em relação ao mundo, como um sábio que se mantém livre em relação aos factos que poderiam levá-lo a acreditar prematuramente em si? Por isso hesita em ser seja o que for; um carácter, um modo de vida, definido, uma profissão, não passam de representações sob as quais avulta já o esqueleto que será tudo quanto lhe resta no fim. Busca compreender-se por outros meios; com aquele apetite de que é dotado para tudo quanto pode vir a enriquecê-lo interiormente (mesmo para além dos limites da moral e do pensamento), experimenta a impressão de ser um passo, livre de seguir em todas as direcções, mas que vai sempre de um ponto de equilíbrio até ao seguinte, e sempre em frente. E se imagina, um belo dia, ter encontrado a ideia justa, apercebe-se de que uma gota de incandescência invisível caiu sobre o mundo e que a Terra, com a sua luz, mudou de aspecto.


Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,
Lisboa: Livros do Brasil, s/d
 
 
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8. O mundo não é assim tão complicado: levantas os olhos, baixas os olhos, esticas o braço e tocas; não esticas o braço, és tocado.

Gonçalo M. Tavares, "Breves notas sobre o poder"
in Granta n.º2, Lisboa, Tinta-da-China, 2013
 

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