terça-feira, 31 de janeiro de 2012

R de Regresso ao real (IV)

[...]
XI.

Colocas a tua mão direita sobre o coração ao adormecer e regularizas deste modo o incómodo do tempo em que estiveste acordado, do tempo que houve que preencher com o absurdo quotidiano. Essa mão direita é uma aranha pacífica e atenta que ganhou também o seu repouso e um sonho que não é possível controlar nem situar na caótica convulsão do universo que a cada um pertence.
Dormes. E enquanto lutas com um grupo de bandidos num Rio de Janeiro onde nunca estiveste, enquanto assistes à passagem de semblantes luminosos de gente que deve ter morrido há muito tempo, ou enquanto sorris internamente perante uma história que existe no outro lado da realidade, a tua mão continua a arder, independente, na lenta combustão que a tornará lívida, inerte, dura e terrível, no transitório momento que separa a vida do apodrecimento. O sonho é apenas uma outra forma da realidade e talvez (quem o sabe?) a morte o seja também. Porém o que definitivamente se transforma é a tua mão direita, essa peça que tão descuidadamente transportas, como se fosse um direito absoluto a posse desse extravagante objecto, como se a memória te impedisse de observar o monstruoso teatro que ela, a mão, executa durante aquilo a que chamamos tempo. As unhas. Os dedos. As articulações. E algo ainda. Como aceitar impassível a presença da mão, desse pequeno corpo a cujo movimento não podes assistir atenta, continuamente? Estamos fabricados para as ideias gerais mas nada existe nelas que nos ofereça um pouco de paz, um pouco de certeza no destino de todos e cada um.
Acordas. Eis a tua mão direita que se move numa direcção que lhe é própria, e se te pergunto que fizeste com ela, que tens feito com ela, qual o seu futuro, então entenderás quanto o domínio, a percepção e o controle das diversas realidades te é interdito.


Manuel de Castro, "Hans e a mão direita"
in GRIFO, 1970

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXVII b

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XXI)




Hoje, a luz (e as sombras) das 17h30.
    

domingo, 29 de janeiro de 2012

D de Davam grandes passeios ao domingo (IV)

P de Poética (XVIII) *

O ofício do poeta, ofício que não se aprende, consiste em colocar os objectos do mundo visível, tornado invisível pela borracha do hábito, numa posição insólita que interpele o olhar da alma e lhe confira tragédia. Trata-se, pois, de comprometer a realidade, de a apanhar em falta, de a inundar subitamente de luz e de a obrigar a confessar o que ela esconde. [...]


Jean Cocteau


* Mas também deve ser F de Fazer Fotografia.

sábado, 28 de janeiro de 2012

J de "Je sauverais le feu"



[Lisboa, 26/01/12]

T de (Uma) teoria de pássaros (XXVII)



E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XII)

[...]

Poesia, risco, amor. Neste feixe repete-se um rosto.

Rosto furador de muralhas, como verifica o poeta Paul Éluard, e do planeta minúsculo faz-se a partida para ilimitadas terras.

Acendem-se pássaros em pleno céu. A terra treme e o mar inventa canções novas. O cavalo do sonho galopa em cima das nuvens. A flora e a fauna transformam-se. A cortina do son, que ainda há pouco desceu sobre o tédio do velho mundo, volta a levantar-se para surpresas de astro e areia. E vingados que ficamos dos minutos lentos, dos corações tépidos, das mãos racionais, finalmente olhamos.

[...]


René Crevel
(na introdução que termina, citando 
A poesia não é acto de um, mas de todos.)



sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

B de Biorritmo - CXIII b

TIEMPOS DIFÍCILES

Era todo tan triste y tan absurdo.
No vivías apenas. Te colgabas
de la pared de la melancolía
y veías pasar las lentas horas
que hacia nada conducen y hacia nunca.
Las mujeres te habían retirado
su protección, los dioses su asistencia
y la literatura su cobijo.
Fueron tiempos difíciles aquéllos.

Luis Alberto de Cuenca, El hacha y la rosa (1993)

B de Biorritmo (CXIII)

"I'm half alive and it's driving me mad."

[Na voz de Billie Holiday]

 

T de (Uma) teoria de pássaros (XXVI)


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

P de Poética (XVII)


Jean Cocteau, Le Sang d'un Poète, 1930

R de Rezar na era da técnica (IV)


Bruce Davidson, "Widow of Montmartre, Mme. Fauché (Hands Fixing Flowers)", 1956

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." - XI c

[...] Para a multidão, uma vedeta é uma pessoa que caminha sobre as águas: triunfa, por procuração, dessa sensação de "mergulho" prenhe de angústia que é a sorte do homem moderno arpoado pelo anonimato voraz da multidão das grandes cidades. Ao ver os olhares prenderem-se à pantalha como a uma bóia de salvação, compreende-se perfeitamente que o seu contacto, mesmo imaginário, imunisa contra a morte, triunfa, ainda que por um só instante, do sentimento de não-reconhecimento que é o lote da vida das moléculas humanas em vão rebeladas contra a condição que lhes foi criada de entrar sem apelo "em composição". O difícil é saber-se a partir de quando uma fixação a princípio tão imprevista começou a ver-se mais ou menos sabiamente solicitada: porque é evidente não ter a oferta ficado muito tempo em atraso sobre a solicitação. O acidental, o imprevisto, como no cinema, ritualizou-se prontamente, e no negócio nem sempre é esquecido o juro do culto. Tudo se passa hoje como se produzisse uma "corrente de ar" que se tornou para o artista uma perigosa causa de desquilíbrio: é evidente que a partir dum certo grau de sucesso inicial, o escritor moderno se sente apesar de tudo apanhado pela "dimensão do grande homem". O nascimento do grande escritor corresponde em 1949 (pelo que diz respeito à grande massa do público) não a uma condecoração por serviços prestados (frequentemente a título póstumo) mas antes à necessidade difusa de prover sem demora a faltas e vazios entre os cabeças de cartaz (e isto é especialmente evidente nos meios fechados, como o da Boa Imprensa de extrema-esquerda, onde se produzem com frequência, por uma ou outra razão, mutações ou "separações"). A verdade é que o escritor dispõe hoje de mil maneiras de se manifestar de alcance muito mais eficaz do que que os seus livros. A sua situação ganha muito em rapidez ao servir-se de outras vias além da lenta penetração duma obra escrita, da lenta digestão dela por um público que a fome nem sempre devora. [...]


Julien Gracq
in A Literatura no Estômago, pp. 45 e 46

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XII)

LÍNEA CLARA

a Pollux Hernúñez

Dicen que hablamos claro, y que la poesía
no es comunicación, sino conocimiento,
y que sólo conoce quien renuncia a este mundo
y a sus pompas y obras - la amistad, la ternura,
la decepción, el fraude, la alegría, el coraje,
el humor y la fe, la lealtad, la envidia,
la esperanza, el amor, todo lo que no sea
intelectual, abstruso, místico, filosófico
y, desde luego, mínimo, silencioso y profundo -.
Dicen que hablamos claro y que nos repetimos
de lo claro que hablamos, y que la gente entiende
nuestros versos, incluso la gente que gobierna,
lo que trae consigo que tengamos acceso
al poder y a sus premios y condecoraciones,
ejerciendo un servil y injusto monopolio.
Dicen, y menudean sus fieras embestidas.
     
Defiéndenos, Tintín, que nos atacan.

Luis Alberto de Cuenca, La Vida en Llamas (2006)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XX)

Duas formas de luz (re)confirmadas ontem ao jantar:
a poesia e os amigos.

B de Biorritmo (CXII)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

B de Biorritmo (CXI)

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." - XI b

[…]
Desde que existe um público literário (quer dizer: desde que há uma literatura) o leitor, colocado diante de uma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante de um texto, vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regra e sem razão, quando encontramos alguém: "ama" ou "não ama", sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas, a sensação de ligeireza, de liberdade pura, embora suspensa, que se pode comparar à sensação de um galope sobre um cavalo de raça. Pode-se dizer, efectivamente, no caso de uma feliz conjugação, que o leitor adere à obra, enche de segundo a segundo a capacidade exacta da forma vazia que vai aprofundando numa rapidez voraz, formando com ela, no vento contínuo das páginas viradas, esse bloco de velocidade lubrificada e sem falhas cuja recordação depois da última página vir bruscamente "cortar o gás" nos deixa atordoados e vacilantes como num princípio de náusea. Alguém que tenha lido um livro desta maneira fica preso a ele por um laço forte, uma espécie de aderência, qualquer coisa parecida com o sentimento vago de ter sido iluminado; durante uma conversa, cada um poderá reconhecer noutrém, mesmo só através de uma inflexão de voz particular, esse sentimento quando ele se exprime, por vezes com os mesmos rodeios e o mesmo pudor próprios do amor, e se uma certa ressonância se produz dir-se-ia que se tocaram dois fios eléctricos. É este sentimento, e ele só, que transforma o leitor em prosélito fanático que não descansa (sendo esse, talvez, o mais desinteressado sentimento que exista) enquanto não fizer partilhar por outros a sua singular emoção. Há livros que nos queimam as mãos, que semeamos como por encanto, que compramos meia dúzia de vezes sempre contentes por nunca os vermos voltar. Cinquenta leitores deste quilate, fazendo incessantemente vibrar quem os rodeia, são outros tantos portadores de vírus filtrantes que chegam para contaminar um vasto público – bastam algumas dezenas de anos, por vezes um pouco mais, frequentemente muito menos; a glória de Mallarmé, como se sabe, não teve outro veículo: cinquenta leitores que se deixariam morrer por ele.

Julien Gracq
in A Literatura no Estômago, pp.15 e 16

domingo, 22 de janeiro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XI)

[...] Aliás, algo agradava a esse público no tom destas vozes proféticas: a seguir à guerra, ele esperava instintivamente da sua literatura uma explosão, um levantamento em massa - tinha o direito de o esperar - representava-a de antemão brutal, excedida, apocalíptica, conquistadora, um pouco à maneira desse desembarque que tinha esperado durante tão longos meses. Comprava muitos livros - todos os que lhe eram propostos de semana a semana, de olho vidrado e sobrancelha carregada, como se lhe estendessem revólveres prontos a disparar, pelos arautos da nova Promessa. Quem o sabia? talvez fosse aquele, era preciso não perder o messias. [...] Contudo a arca milagrosa não se abria, não se avistavam senão os primeiros clarões precursores. Era preciso esperar; à beira do santo Lugar as revistas multiplicavam os novos acampamentos e faziam bicha - equipavam-se como para proteger a raça inteira dos dentes do dragão. Os meses passsaram, e os anos; veio a fadiga, e o desencanto; o público esfregou os olhos. Tinha diante de si este espectáculo chulo: jockeys de "Grand Prix" cavalgando lesmas.


Julien Gracq
in A Literatura no Estômago,
trad. Ernesto Sampaio, Lisboa: A Barca Solar, s/d

E de Espera (XXIII)


John Everett Millais, "St. Agnes Eve", 1857

sábado, 21 de janeiro de 2012

C de Começar o dia com um livro novo (VII)

Nunca soube porque é que todos lhe chamavam "filosofia".
Ela dizia-me que eu era o sol e ela a lua, que eu era o cubo e ela a esfera, que eu era o ouro e ela a prata. Então saíam chamas do meu corpo e chuva de todos os poros do seu.
Abraçávamo-nos e as minhas chamas misturavam-se à sua chuva e formavam-se infinitos arco-íris à nossa volta. Foi então que ela me ensinou que eu sou o fogo, e ela, a água.


Arrabal, La Pierre de la Folie,
Paris: René Julliard, 1963
[Trad. ID]

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

B de Biorritmo (CX)


[Trafaria, 1999]

E de Espinhas para um gato (XIII)



Théophile Alexandre Steinlen
(1859-1923)
"Chat au Clair de Lune"

B de Biorritmo (CIX)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

F de Falar para as paredes (XI)

GRAVIDADE DO CORAÇÃO



A água das fontes corre gravemente como a boca de um cão. A rosa intimida-me. Nunca ri. E a árvore dorme de pé. Não brinca. Ordena, por exemplo, à sua sombra: deita-te, descansa, partimos assim que anoitecer. Ao anoitecer, a sombra sobe-lhe para os ramos e partem.
Quem ama escreve nas paredes.
Se eu visse o meu coração, já não teria coragem para te sorrir. Ele trabalha demasiado nesta noite sem lua. Deitado sobre ti, espreito o seu galope, que me traz uma má notícia.


Jean Cocteau, Tanta coisa por dizer,
Lisboa: Língua Morta, 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

P de (The) Privacy of Rain (XX)

O QUE PENSAS QUANDO OLHAS PARA MIM E NÃO DIZES NADA



Há um jardim com anões de barro quando não falas
mas isto sou eu a dizer e posso enganar-me e     aliás
para que serve o que digo?
Estás a pensar na chuva que há-de cair só nas tuas mãos
nas minhas     que me importa?
É a chuva?     Pensas nela enquanto olhas
para mim   Que mundo é este?   Fala
diz qualquer coisa
ou deixa que assim seja por todos os séculos
ou eu ou a chuva
muito bem     não podes decidir
É um prazer saber-e    Amen


Abel Neves, Eis o amor     a fome e a morte (1999)

domingo, 15 de janeiro de 2012

L de Lar (VI)

sábado, 14 de janeiro de 2012

P de Poética (XVI)

LA EDUCACIÓN SENTIMENTAL


Solía repetir con menosprecio:
la poesía para nada sirve.
Me quiso preparar para un infierno
donde, al bajar la guardia se arriesga uno a perder,
donde sólo el dinero protege de este frío
de la edad. Pero, en cambio, no sabía
que es por este motivo que la necesitamos,
que es preciso rastrear la poesía
por hospitales y juzgados: luego
ya hablará de la amada.
Hay poesía incluso en gente
que, al igual que mi padre, odió la vida.
Y tenía razón en su argumento:
de nada sirve, aquélla que él leía.


*


RÉQUIEM


Es la fotografia de un grupo de poetas.
Tiene una extraña mancha:
procede de la sombra de un árbol, o es el resto
de algún mal revelado.
Poca cosa, unos poetas:
son tan débiles.
Simulan fortaleza,
pasión, indiferencia.
Muertos mejoran, dicen.
Afortunados quienes pueden
hacer surgir el mito desde algunos versos
y desde un amarillo retrato de poetas.
Yo, que no aguantaría 
ni una hora a Verlaine,
siento pena por ti,
amigo al cual no me devuelven
ni versos ni retratos
con las manchas que pone
la muerte al señalar 
el primer candidato 
al mito o al olvido,
dos formas, nada más, de un solo engaño.

Joan Margarit, Aguafuertes (1998)

R de Regresso ao Trabalho (XXXV)

"É curioso, mas uma prisão é menos sinistra do qualquer local de trabalho."

Albert Cossery, A violência e o escárnio,
Lisboa: Antígona, 1999

[Leitura de cabeceira desde os tempos do estágio]

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

E de Espera (XXII)

Foi possível     sabes?
O dia foi breve menos do que os outros     possível
tão breve     a passagem dum melro     todo amarelo no canto
foi só escrever o poema
e logo a noite     tão breve


Abel Neves, Eis o amor     a fome e a morte (1998)
CHAPLINESQUE


We will make our meek adjustments,
Contented with such random consolations
As the wind deposits
In slithered and too ample pockets.
 
For we can still love the world, who find
A famished kitten on the step, and know
Recesses for it from the fury of the street,
Or warm torn elbow coverts.
 
We will sidestep, and to the final smirk
Dally the doom of that inevitable thumb
That slowly chafes its puckered index toward us,
Facing the dull squint with what innocence
And what surprise!
 
And yet these fine collapses are not lies
More than the pirouettes of any pliant cane;
Our obsequies are, in a way, no enterprise.
We can evade you, and all else but the heart:
What blame to us if the heart live on.
 
The game enforces smirks; but we have seen
The moon in lonely alleys make
A grail of laughter of an empty ash can,
And through all sound of gaiety and quest
Have heard a kitten in the wilderness.




- Hart Crane

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

PROMETEU
[Jardim Constantino, 1923]


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

I de Insónia

ACTUALIDADES PATHÉ


Sobre vinte quilómetros de tela
Chapéu de coco e asas de anjo
Passa São Charlot,
O bem-amado do mundo,
Para o ensinar a rir
O riso universal
E redentor.

No cinema
Em cinco continentes ao mesmo tempo
É a minha pátria.


Claire Goll (trad. João Barrento)
in O Bosque Sagrado - o cinema na poesia,
 Porto: Gota de Água, 1986

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

R de Revisão de texto (ou E de Errata) b


Hoje, perto de um dos meus jardins preferidos.

T de (Uma) teoria de pássaros (XXV)

O FAROL

Conto popular argentino


Cada mañana había que limpiar la linterna
de pájaros muertos.

Azorín


Deserto adentro,
Construir um farol.
Há algo que salvar em todas as partes.

Não deixes que me esqueça,
por favor.
Ânsia de escuridão torna-se caverna,

isolamento.

Graças a ti,
acedo ao exterior,
desenho um rumo.

Assim amanheço luz de entre as minhas sombras:
Pouco importa se há pássaros mortos.


Josep M. Rodríguez, Raíz

domingo, 8 de janeiro de 2012


"Ao leme", 1915

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXVI




[...]

I gazed a gazely stare at all the millions here
We must have died alone, a long long time ago
[...]

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." - IX

[...]

ILS ÉTEIGNENT LES ÉTOILES À COUPS DE CANON

Les étoiles mouraient dans ce beau ciel d'automne
Comme la mémoire s'éteint dans le cerveau
De ces pauvres vieillards qui tentent de se souvenir
Nous étions là mourant de la mort des étoiles
Et sur le front ténébreux aux livides lueurs
Nous ne savions plus que dire avec désespoir

ILS ONT MÊME ASSASSINÉ LES CONSTELLATIONS

Mais une grande voix venue d'un mégaphone
Dont le pavillon sortait
De je ne sais quel unanime poste de commandement
La voix du capitaine inconnu qui nous sauve toujours cria

IL EST GRAND TEMPS DE RALLUMER LES ÉTOILES

[...]


Guillaume Apollinaire

sábado, 7 de janeiro de 2012

C de Começar o dia com um livro novo (VI)

22

Na universidade aprendeste a luz
que não vem nos livros, às escuras,
no teu quarto velho. Dois olhos, nariz
e boca. sargaços que são pernas e
braços de dois corpos que experimentam
a direcção do vidro queimado entre o
sol e a esperança, a dor que te ensina.


Rui Costa, Breve ensaio sobre a potência,
Lisboa: Língua Morta, Janeiro de 2012

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

T de (Uma) teoria de pássaros (XXIV)


Karen Blixen, Quénia, 1923

P de Poética (XV)


quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

M de Música para os meus olhos (XXIII)

M de Música para os meus olhos (XXII)

SONATA


Ouço-a enquanto a chuva cai,
e penso naquele cão solitário
que ia atrás do caixão de Mozart.
Sigo-o nos compassos deste piano
e nos caminhos que a água traça
ao deslizar pelos vidros.
Vou, misteriosamente feliz, seguindo um cão
feito ao mesmo tempo de música e de chuva.


Joan Margarit
[Trad. ID]

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXV b

VIAGEM


Estou a pensar em ti dentro de um comboio
parado na estação de uma cidade
em que nunca estive.
Uma estação de plataformas cansadas.
De crepúsculo difícil.
Quando se esgota o tempo
é tão desolador atrever-se a sonhar.

O comboio arranca e passa em frente de uns edifícios.
Atrás de uma janela iluminada
vejo o interior: é um instante
com a vaga suspeita de umas vidas.
Também não sei muito mais
sobre aquilo a que chamámos o nosso amor.


Joan Margarit, Misteriosamente Feliz, 2009
[Trad. ID]

C de "Canção diante de uma porta fechada" (V)


Albert Edelfelt, "At the door", 1901

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

L de (A) Luz da Sombra (XIX) *


* Uma prenda-miniatura.

P de Poesia (IX)

A LIÇÃO DE ESTÉTICA


«Mas que beleza há na poesia?»
Escuta, quando vês um grande amigo
rodeado de mulheres, quando estás
fascinado com a orquestra, e sob o reflector
resplandecem as cores de uma deusa
que desce seminua à plateia,
onde tu estremeces, escondido
em toda aquela multidão!, quando em noite
escura e serena amigos dançam sem mulheres
numa praça ao som de um
acordeão e tu ficas à parte; pois bem, isso
não é belo para ti? Também é belo
para um velho que se chama
crítico e acha beleza em muitas coisas
e que até se aventurou a descobrir no mundo
e talvez fora do mundo, coisas cada vez
mais belas, mas que diz, com amor: «que belo
é este poema!» E tu,
tu olhas-me sem sequer me dares um beijo?


Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2003

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O de "Onde se lê gato" (VI)

E de Equilíbrio de forças (II)

Dícen?
Olvidan.
No dícen?
Envídian.

Hacen?
Fatal.
No hacen?
Igual.

Para que
'Sforzar?
Todo es
Hurgar.


Mário Cesariny, O Virgem Negra,
Lisboa: Assírio & Alvim,  1996

R de Regresso ao real (III)

[...]

Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem,
Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo.
Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar
Se estamos vivos, tanto nos querem poupar.
Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los,
O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina.
Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros,
Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem,
Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze,
De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais.
Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes
Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,
Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência?
Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho
Que em noite santa vagueavam de terra em terra.

[...]

Friedrich Hölderlin, "Pão e Vinho"
in Elegias, Lisboa: Assírio e Alvim, 1992

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

R de Regresso ao Trabalho (XXXIV)


La anciana echó hojitas de té en el agua hirviendo para ver mi vida. Por el humo se fueron mis sueños.



*



AJEDREZ

Estoy jugando el ajedrez con la Señora Muerte a la orilla del mar. Hemos cambiado las reglas. Cada vez que Ella o yo tocamos una pieza del contrario, la arrojamos tranquilamente al océano. Al cabo de cinco minutos quedan sólo su Rey y el mío.
- Oiga - le pergunto -, cuando ya no queden piezas, que hacemos? Tiramos el tablero?
Pero la Muerte abre muchíssimo la boca y me sonríe. No sé por qué, sospecho que Ella piensa en tirar otra cosa.


*



PURGATORIO

Mañana, casi todo el dia, será martes. O también miércoles. Es igual. Yo confundo los días. Ayer fue jueves y hoy es lunes. Llevo tanto tiempo encerrado que sólo espero al Domingo para que alguien me saque de aquí. 


Javier de Navascués
in Isla de Siltolá – Revista de Poesía, 5-6,
Sevilha, 2011

domingo, 1 de janeiro de 2012

B de Bom Ano Novo (VI) *


LEGENDA


Hoje, quero da vida 
Que ela seja tranquila; 
Que seja uma dor e doa, 
Mas uma dor boa: 
Sem o sal que na ferida 
A torna mais dorida. 


- Emanuel Félix

* Uma espécie de resolução de Ano Novo.

T de (Uma) teoria de pássaros (XXIII)


THE BEGINNING OF MEMORY


There's a story in an ancient play about birds called The Birds
And it's a short story from before the world began
From a time when there was no earth, no land.
Only air and birds everywhere.

But the thing was there was no place to land.
Because there was no land.
So they just circled around and around.
Because this was before the world began.

And the sound was deafening. Songbirds were everywhere.
Billions and billions and billions of birds.

And one of these birds was a lark and one day her father died.
And this was a really big problem because what should they do with the body? 
There was no place to put the body because there was no earth.

And finally the lark had a solution.
She decided to bury her father in the back of her own head.
And this was the beginning of memory.
Because before this no one could remember a thing.
They were just constantly flying in circles.
Constantly flying in huge circles.


- Laurie Anderson

[Obrigada, Hugo. 
E Luís.]


S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXV


[Lisboa, fim de 2011]