sexta-feira, 11 de março de 2011

B de Biorritmo (LVI)

sentada na tua cama
a vida infantil da morte
tem a graça das histórias mecânicas

Francis Picabia


Nas costas do postal que tinha e onde cai
desde há muito, não sei em que cidade,
uma tarde de chuva insuperável,
larguei apressado contorno à chama
desse homem que fez a noite ajoelhar-se.
Cambado corpo, sonoro, num colete
sem botões para cores de mau vinho.
Aquele ombro descaído, debicado
por generosos pássaros,
sustinham juntos o ofego do acordeão,
decente e triste, de uma presteza viajada.
Sua infecção calma abrindo-nos
poços de ar no sangue, lento e impuro,
mendigando mais a leste um novo embalo.
Os ossos vibrando, frágeis, ocos,
como flautas para o sopro de um deus.
E os três euros, um insulto não sei
se a nós mesmos, se a este mundo
que se faz caro
para o vazio nos parecer chique.

Espirais de fumo, um frasco de tinta
tombado e a mancha cega que aos poucos
levará a memória disto, este encontro
de amigos, este bar.
Voltarei a ter encostada à minha
a carne áspera da solidão, voltarei
a esse sim-não-sim-não-sim: perdido
para segundas escolhas,
reflexos abolidos entre estranhas
gravidades, entretido com rudes
brincadeiras e esses sonhos nocturnos
precisos e práticos neste estupor
de corpos que vão ficando de sobra
uns para os outros. Poesia nenhuma,
matemática, simples e atroz.

Faço o caminho de volta, demoro
esses cansados fins de ruas e a linha
de candeeiros, sua líquida luz misturada
de urina, onde perdem a pele as imagens
e oferecem a sua carne aflita ao delírio
que me leva pela mão.
Atravessando jardins suspensos
no assombro monocórdico das flores,
perfume frio e gesto prolongado,
essa vénia num jeito doce e final.

No quarto, enquanto o silêncio rói,
escava os seus buracos, bato uns versos,
extraindo à máquina de escrever
essa grave caligrafia,
como um piano rematando outra
das suas canções de abandono e morte.
Estou só cigarro nos lábios e espero.
Olho as mãos, a marca de um anel
que nunca pus no dedo e que me intriga,
dói-me a sua mordedura e veneno.
Sentada na cama, lá esta ela
de chinelos, balouçando os pés frios,
com o seu ar trágico e indeciso.


Diogo Vaz Pinto

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