quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

B de Bom Ano Novo (II)

A Revista Única do Expresso publicou este balanço das coisas que desapareceram para sempre no decurso da década que agora termina. É verdade que já não há telegramas, nem Concorde, nem Feira Popular, nem filme para a Polaroid que ainda guardo na gaveta porque foi um dos meus objectos mágicos, mas os outros "epitáfios" são um pouco apressados: a Nazaré continua a ser uma feliz excepção aos esforços da ASAE no sentido de proibir o consumo de fritos em plena areia; o giz ainda é uma realidade em muitas escolas (e bem mais ecológico e funcional por vezes); ainda há quem escreva cartas manuscritas (apesar de os alunos desconhecerem, em muitos casos, o significado da expressão "papel de carta"); e a minha rua conjuga, em certos dias e sem qualquer esforço de reconstituição histórica, um engraxador quase cativo, um amolador itinerante e uma costureira de bairro permanente. Sou uma privilegiada - ou se calhar também desapareci para sempre e ainda não reparei...

B de Bom Ano Novo

ENVIO
Vai livrinho e deseja a todos
Flores no jardim, bem-estar a rodos,
Um pichel de vinho, uma pitada de talento,
Uma casa rodeada de relva ao vento,
Um rio ali ao lado sussurrante,
Um rouxinol no sicômoro trinante.
Robert Louis Stevenson
(versão portuguesa de João Rodrigues)
Achei que era um bom poema para desejar um bom Ano Novo - e claro que podem acrescentar outros desejos à lista, embora a "casa rodeada de relva ao vento" me pareça uma ideia deliciosa.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

F de Foi deste poema que te falei (II)

[As duas primeiras estrofes não lembram aquela sequência do Vampyr, do Dreyer, em que ele é transportado dentro do caixão?]

'T was just this time last year I died.
I know I heard the corn,
When I was carried by the farms,
It had the tassels on.

I thought how yellow it would look
When Richard went to mill;
And then I wanted to get out,
But something held my will.

I thought just how red apples wedged
The stubble's joints between;
And carts went stooping round the fields
To take the pumpkins in.

I wondered which would miss me least,
And when Thanksgiving came,
If father'd multiply the plates
To make an even sum.

And if my stocking hung too high,
Would it blur the Christmas glee,
That not a Santa Claus could reach
The altitude of me?

But this sort grieved myself,
And so I thought how it would be
When just this time, some perfect year,
Themselves should come to me.

Emily Dickinson

F de Fazer Fotografia (VII)

Quando os poetas salvam num poema exactamente aquilo que não conseguimos salvar em fotografia:

[para a Maitê]

Na rua onde moro
junto ao restaurante da esquina
plantaram um pequeno roseiral
na calçada esburacada
houve logo quem ficasse com medo
que subisse o preço das refeições
mas afinal isso não aconteceu
há uma semana que as rosas
vão esmorecendo na calçada
enquanto o medo muda de cor.

Carlos Alberto Machado, REGISTO CIVIL - poesia reunida,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2009

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

C de Convalescença

Precisei de estar em convalescença (aliás, acho que ainda estou) para perceber um pouco melhor isto:

“Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim.”
Vergílio Ferreira

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

P de Postais de Natal

Muito, muito obrigada pelos postais de Natal de hoje. O mesmo carinho para postais tão diferentes...

... com uma fotografia de Gérard Castello-Lopes;

... com um texto de João Miguel Fernandes Jorge (in Merry Christmas, Averno, 2006):


"A memória tem que ser nestas coisas de natal uma potência da alma. Ela chega uns dias antes da noite festiva. (...) Vêm por assalto, quase, a Virgem, os Anjos, as Ovelhas, o Burro e a Vaca - todos merecem maiúsculas, pois são como um passar revista aos termos de mais valia fixados desde a mais remota infância, vivem e fazem-me viver em função do seu aparecimento -, o Menino, José, os Reis que seguiram uma estrela e eram Magos. São um indício da divindade da alma, quero dizerm da presença do que ainda resta de divino na minha alma."


... com chocolate:



... ou com um filme que faltava na minha lista.

B de Biorritmo (IX)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

F de Foi deste poema que te falei:

UM POUCO MAIS QUE HAIKU DE AMOR


Tenho medidos os dias a cigarros, rápidos e imprecisos,
fumados até ao litoral dos teus olhos. Continuo...
no mesmo sítio de sempre, devolvendo
às cadeiras o sorriso emprestado pela familiaridade
dos seus gestos tão pouco poéticos.

Tenho acertado os dias pelos copos e agora
estão - ou estarei eu? - vazios. Vai-me pedindo
mais uma cerveja, que eu vou convocar
certos demónios no espelho da casa de banho e, depois,
beber um pouco de água opaca, lavar bem as mãos, secá-las
e regressar à mesa quatro minutos menos feliz.

Não morras nunca, digo-te, acrescentando logo a seguir
que, mesmo assim, não quero falar da morte,
muito embora - desculpa-me a insistência -
o teu cabelo hoje me pareça mais preto que nunca.
Sorris.

É o que me vale, sabes sempre sorrir tão bem.


David Teles Pereira
in Criatura, n.º 4 (Dezembro 2009)

F de Fazer Fotografia (VI)

Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. "Agora estão certas", diz. "Continuam tão belas quanto eram, mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo."
Rosa Maria Martelo, "Lama"
in A Porta de Duchamp, Lisboa: Averno, 2009

sábado, 19 de dezembro de 2009

P de (Um Ano de) Pássaros (IV)

DECEMBER

When the dark hawberries hang down and drip like blood
And the old man’s beard has climbed up high in the wood
And the golden bracken has been broken by the snows
And Jesus Christ has come again to heal and pardon,
Then the little robin follows me through the garden,
In the dark days his breast like a rose.

Iris Murdoch

P de (Um Ano de) Pássaros (III)

Para os postais de Natal deste ano, escolhi uma fotografia do passarinho que decidiu viver no saguão do prédio. Parece frágil, mas regressa todos os dias, ao entardecer, faça chuva ou faça sol. Por isso, achei que era um bom exemplo: desejo-vos boas festas e sobretudo um Ano Novo resistente a tudo, excepto à amizade e à felicidade.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

F de Fazer Fotografia (V)

Eduardo Gageiro, "Cais das Colunas" (1973)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

M de Merry (?) Christmas

UMA ESPÉCIE DE CONTO DE NATAL


Reuniam-se aos domingos à tarde
na leitaria
com os casacos de pele de zebra e os bichos
ao pescoço de olhos de vidro
na juventude tinham sido
criadas de servir
e toda a vinha tinham lutado
por uma boneca loira em cima da cama
com colcha de cetim cor-de-rosa e passamanarias
a ponto de dormirem no chão
transidas de frio
bebiam chá comiam torradas
com muita manteiga
e pediam bolos de creme colorido
uma vez por outra o criado simpático
(havia um outro mas com maus modos para elas)
conseguia arranjar-lhes restos
de bolo de noiva
e as três exultavam então
só por acanhamento não encomendavam
um bolo de noiva para as três
num dia de Natal particularmente frio
sentiram qualquer coisa
nas saias plissadas
era um rato vulgar com um olhar
muito meigo e assustado
afeiçoaram-se logo ao animal
que levaram para casa comovidas
chamavam-lhe o nosso menino lindo
e consentiam-lhe tudo
o rato de noite roía as três bonecas
e as três de manhã iam contemplar os estragos
como aquelas pessoas que se deixam ficar paradas
diante da casa onde se consumou o crime hediondo
ao menos podiam ter arranjado um cão
ou uma criança da Santa Casa
quando o rato adoeceu chegaram a ser insultadas
nas salas de espera das clínicas veterinárias
(a excentricidade nos afectos mais tarde ou mais cedo
sai cara)
o rato ficou internado uns dias
e elas suspeitaram que tinha sido trocado
desconfiaram então muito das instituições
o mundo afinal era uma encenação
e não valia a pena perguntar
se um criado um veterinário ou um bolo de noiva
eram a sério ou a fingir
só se podia tentar averiguar se a encenação
revelava bom gosto ou não


Adília Lopes, DOBRA

domingo, 13 de dezembro de 2009

P.S. Se alguém encontrar uma imagem com 4 velas para a próxima semana de espera, agradeço desde já...

E de Espera (III)

Marc Chagall, "As três velas"

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

V de Viagens (II)

Normalmente, todas as grandes viagens começam com um pequeno esquecimento:

"Terminal 2 do aeroporto do Dubai, 6h30. Embarque para Cabul às 7h na Kam Air.
Esqueci em Lisboa o lenço que ia pôr quando saísse do avião. Compro o mais discreto que encontro (poliéster preto com lantejoulas made in India) enquanto embarcam afegãos para o voo anterior ao meu. Homens de shalwar kamiz com turbante ou taqiyah. Uma mulher numa cadeira de rodas, coberta da cabeça aos pés como um saco preto."

Alexandra Lucas Coelho, Caderno Afegão

B de Biorritmo (VIII)

Sempre preferi o filho ao pai:
Jeff Buckley,"Lilac Wine" (letra e música de James Sheldon)



I lost myself on a cool damp night
Gave myself in that misty light
Was hypnotized by a strange delight
Under a lilac tree
I made wine from the lilac tree
Put my heart in its recipe
It makes me see what I want to see...
And be what I want to be
When I think more than I want to think
Do things I never should do
I drink much more than I ought to drink
Because It brings me back you...

Lilac wine is sweet and heady, like my love
Lilac wine, I feel unsteady, like my love
Listen to me... I cannot see clearly
Isn't that he coming to me nearly here?

Lilac wine is sweet and heady where's my love?
Lilac wine, I feel unsteady, where's my love?

Listen to me, why is everything so hazy?
Isn't that he, or am I just going crazy, dear?

Lilac Wine, I feel unready for my love...

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

B de Biorritmo (VII)


Uma das minhas preferidas. E tive direito a ouvi-la ao vivo em Paris. Happy birthday, Mr Waits.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

L de Livros que apetece ler à lareira

"Esse Inverno de 1841 foi particularmente rigoroso. O frio veio antes do Natal, e em Janeiro instalou-se uma grande geada, mortalmente calma e contínua. Se alguma neve caía por vezes, era em grãos duros e escassos, mas não havia vento, não havia sol, não havia uma agitação no ar ou nas águas. Um gelo espesso cobria o Sund e podia ir-se a pé de Elsinore à Suécia e tomar café com os amigos, esses cujos pais tinham encontrado os pais dos que atravessavam, agora gelada, essa água ao som dos canhões, quando as vagas foram alterosas. As gentes pareciam fitas de negros soldadinhos de chumbo na infinita planura cinzenta. Mas à noite, quando as luzes das casas e os fracos lampiões das ruas iluminavam apenas um breve caminho no gelo, esta planura branca do mar era toda estranha, como se um sopro de morte varresse o mundo. O fumo das chaminés subia a direito no ar. Nem os mais velhos se lembravam de outro Inverno assim."
Karen Blixen, Sete Contos Góticos

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

F de Feriados Nacionais

(Ruínas do Carmo, Dezembro 09)

Afinal não cresci assim tanto: continuo a adorar os gatos das ruínas do Carmo e a ter medo das múmias no Museu Arqueológico. E vou lá regressar as vezes suficientes para matar saudades do anjo no túmulo de D. Fernando e descobrir o alquimista. Só senti falta da música.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

F de Fazer Fotografia (IV)


C de Comércio (Não) Tradicional

(Lisboa, 2009)

C de Começar o dia com uma revista nova

DENTRO DAS IMAGENS

Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio?
A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
porque se esquecem de amar.

Isabel de Sá
in BRILHO NO ESCURO - Revista de Poesia,
nº3 - Inverno de 2009
(Tiragem - 100 exemplares)